Não passa uma semana sem que eu seja questionado, via Twitter: “quando sai o segundo volume de Scott Pilgrim [entre três e 27 pontos de interrogação]”. A meu ver, a culpa é de Crepúsculo: até estúdio de cinema capitulando à falta de memória pós-moderna. Se deixar mais de um ano entre os filmes, será que o público-alvo vai lembrar que a franquia existe?
Scott Pilgrim contra o mundo — Vol. 1 foi publicado pela Quadrinhos na Cia. em maio deste ano. Scott Pilgrim contra o mundo — Vol. 2 sai logo ali em outubro. Menos de seis meses. No original, saía metade destes volumes a cada ANO. Do quinto para o sexto álbum foi quase um ano e meio! E aqui cada volume reúne dois álbuns! E tem preparação, e revisões, e gráfica, e calendário de publicações…
Eu sei, eu sei. Nenhuma explicação vai ajudar, né? Ok. Mas apontem esses forcados para lá. Garanto que a culpa não é do tradutor. Que sou eu, por acaso.
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“Scott Pilgrim se resolve”? “Scott Pilgrim toma vergonha na cara”? “Scott Pilgrim toma jeito”? “Scott Pilgrim entra na linha”?
Essa foi a discussão de alguns dias atrás, entre eu e o editor André Conti, sobre a melhor tradução para Scott Pilgrim gets it together, título do quarto álbum original (e o melhor até agora). Nenhuma opção está errada. Aliás, em tradução, essa discussão sobre certo e errado é complicada. Você tem que adotar algum parâmetro arbitrário, tipo o que soa melhor, ou o que tem mais a ver com o público-alvo.
Uma coisa é certa: toda tradução vai além dos idiomas, e envolve culturas — a cultura de onde saiu o original e a cultura de quem vai ler a tradução. Para respeitar os dois lados, tento encontrar um meio termo que, como teórico semiótico-amador da tradução, chamo de “frequência”: com que frequência gets it together é utilizado na cultura original para referir-se a esse significado? É uma expressão arcaica? Modernosa? Quais são as expressões ou palavras sinônimas? Gets it together é mais ou menos utilizada que esses sinônimos? Entendido isso, qual é o termo ou expressão que tem a frequência de uso próxima, para este significado, no português?
Até que alguém mais esperto transforme isso em algoritmo (e aí, tradutores perderão o emprego), a fórmula não é nada precisa. Mas serve para eu ganhar discussões sobre minhas opções de tradução — no cansaço.
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Aí entra a complicação das referências — ou, para falar bonito, “intertextualidades”. E Bryan Lee O’Malley está constantemente citando diálogos de filmes, letras de música, nomes de bandas, frases tortas de videogames dos anos 90, outros quadrinhos. Alguns fazem parte da cultura pop global, outros são bem específicos à América do Norte, outros são um meio termo complicado de resolver. Todas elas desafiam a capacidade de tomada de decisão do tradutor.
Vários personagens da série brincam que o nome de Ramona lembra Ramona Quimby, personagem de livros infantis da autora Beverly Cleary, famosíssima… mas só no Canadá. Os títulos dos capítulos costumam vir de letras de músicas semi-pop (Bob Dylan, Smashing Pumpkins, Rolling Stones) ou nem tanto (Gordon Downie, The New Pornographers, Primal Scream, Jimmy Reed)… mas também referem-se literalmente ao conteúdo do capítulo. Na luta entre Ramona e Knives, elas trocam ofensas do jogo de computador The Secret of Monkey Island (1990). Scott ouve alguém falar item no sentido de “casal”, mas entende que são os itens de Super Mario World.
Sem falar nas referências à cultura de Toronto. Knives Chau diz que seu colega de escola é fobby. “Fobby” (obrigado, Urban Dictionary!) é um abrandamento de F.O.B., que quer dizer Fresh Off the Boat (“acabou de descer do barco”), termo pejorativo utilizado no Canadá contra chineses, coreanos e outros imigrantes asiáticos. A rodovia subespacial de Ramona Flowers é uma referência ao fato de que a tecnologia dos EUA vizinhos sempre parece mais avançada e mágica que a disponível além da fronteira norte (mas o próprio Bryan O’Malley admite que isso é uma piada “muito interna”).
Nesses casos, além de nenhuma tradução ser certa, nenhuma solução é perfeita. E o texto tem que caber no balão original. E nota de rodapé sisuda, convenhamos, não combina com Scott Pilgrim.
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Tem um filme brasileiro — cujo nome nem enredo não vou lembrar porque só tenho memória de assistir o início, há muitos anos — que começa com a personagem principal (era a Marília Pêra?) numa sessão de dublagem. O filme que está sendo dublado é um clássico americano, em preto e branco. A mulher daquele filme diz uma bela frase romântica, ainda mais romântica na cadência do inglês. A dubladora repete a frase, em inglês, no microfone. Aí o pessoal da mesa de som diz que a ideia de dublagem é que ela duble. A dubladora responde: “Mas é tão bonito…”
É impossível manter toda rede de significados e apuro estético do original numa tradução. Mas, como tradutor jovem, ainda não me acostumei a essa regra. Agradeçam ao editor André Conti por não estarem lendo Peregrino (“Pilgrim”) Escoto (“Scot”) vs. The World (referência ao clássico do Nintendo The Simpsons: Bart vs. The World, claro!).
A propósito, ele acaba de me cobrar o volume 3.
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Erico Assis lê quadrinhos há 25 anos, escreve sobre quadrinhos há 12 anos e traduz quadrinhos há 3 anos. Do selo Quadrinhos na Cia., ele já traduziu Retalhos, de Craig Thompson, Umbigo sem fundo, de Dash Shaw, e Scott Pilgrim contra o mundo, de Bryan Lee O’Malley.
Em breve terá um garçoniere para guardar a coleção, pois sua esposa não admite mais uma página de gibi em casa. http://www.ericoassis.com.br/
Erico contribui quinzenalmente para o blog com textos sobre histórias em quadrinhos.
Fonte:http://www.blogdacompanhia.com.br/2010/09/peregrino-escoto-vs-the-world/
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